terça-feira, 26 de agosto de 2008

Pílulas Praia do Futuro – um filme em episódios

Eu errei, você errou

Um filme sobre distâncias temporais e espaciais.
É noite e vemos a paisagem de uma cidade do ponto de vista de um avião (as luzes da cidade). Gertrude Stein disse que a invenção da paisagem cubista veio junto com a invenção da paisagem do avião. Aqui a paisagem do avião ganha uma outra forma: lágrimas de luz, melancolia e um sereno desespero.
É noite e escutamos uma carta de despedida amorosa do ponto de vista de uma garota (idealista, romântica) tomando o lugar da voz do capitão do avião. Neste momento o avião veste o papel de alegoria (ficção desajeitada): a voz faz parte da diegese do filme porque o avião é um reduto para o sentimento da garota.
Um filme adolescente por excelência.

Castelo de areia

O título já diz tudo, pois o que vemos é uma criança que tem o balde e a pá, mas não tem areia. Um filme que esconde muito por trás das aparências: um monstro secreto. O que me atinge mais nesse filme, a cada vez que eu o revejo, são os momentos de silêncio que existem entre uma fala da garota e uma da mãe ou do pai, pois estes silêncios me revelam um grande vazio: o da família e o do lazer da família. É como se ele fosse uma nota escura do Weekend do Godard. Talvez o filme mais soturno do Praia do Futuro, por incrível que isso possa parecer. O uso da câmera amadora me parece muito justa porque tem uma clara construção e um percurso específico que ela deve percorrer, não é uma curiosidade exótica (esteticista) dos realizadores e muito menos uma exploração barata do suporte.

Pedra

O que uma paisagem esconde? O desespero de uma mãe e a grandiosidade da indiferença do mundo. Este filme contém uma mise en scène fria e mecânica pra falar de um dos sentimentos mais difíceis da mulher: a perda de um filho. Como achar a forma justa? Através da oposição. Só pela oposição é possível equilibrar um sentimento tão forte e maior que tudo. Só pela oposição é possível fugir das ridículas representações de desespero que o cinema tantas vezes já tentou e consequentemente fracassou. Por isso, a paisagem está indiferente, o casal na praia está indiferente, o pescador está indiferente, a câmera está indiferente, o mundo está indiferente. Mas existe uma esperança (perversa, é claro) de que algo deve acontecer. E acontece: a morte. A câmera continua indiferente à mãe, mas acha o seu lugar com o filho morto (num belíssimo e terrível zoom). Um filme de terror por excelência.

Pequena grande história

Da humanidade, mas também do cinema. Decupagem rara de se ver pela sua mobilidade exata, onde estamos sempre onde precisamos estar. Quem é o narrador dessa história? A terra, o homem, o mar, a jumenta, o céu e o homem novamente. Como conseguir unir tantos pontos de vista? Contando com o milagre. É aí que reside a beleza do filme. Ele vai até o limite do cinema, pois acredita na possibilidade desse milagre, com elipses maravilhosas que lembram a famosa elipse do Mocidade de Lincoln e com um uso do fora de campo que abarca tudo, até uma sereia. O filme termina numa nota irônica (de um jeito que só o cinema de invenção consegue) e muito triste simultaneamente. O milagre está cada vez mais difícil, o cinema não é capaz de explodir a humanidade, nem hollywood.

Valores imaginários

Este filme é meu, portanto apenas direi uma coisa.
É um filme imerso em contradição.

Banho de sol para dinossauros

Um diário de viagem. Um filme de amor como Antes do Amanhecer. Um filme de texturas e camadas. Busca por novas formas de relacionar imagens, de tornar o significante plural e aberto (heterogêneo). Todas as relações são possíveis se você está disposto a dançar pelado. O filme dança pelado e convida o espectador a dançar pelado: a entrar num ritual de pele e enigma. E os dinossauros? Eu juro que vi eles dançando também.

Já era tempo

Um filme-esboço a procura de mulheres incríveis. Almodóvar tropical. Um filme que se sustenta em momentos icônicos como o bolo que sugere um melodrama ou o sapato que evoca o desespero de duas mulheres, uma que quer se libertar e outra que deseja se aprisionar. Um filme aberto, sem necessidade de narrativa, pois deposita os sentimentos e os percursos das personagens em pequenos movimentos pontuados por ótimas músicas.

Vídeo (2008)

O filme começa com um ruído branco em cima da imagem do garoto vendado no mar e termina em silêncio em cima de uma imagem branca nos mostrando que a relação da imagem com o som não é tão fácil e natural quanto estamos acostumados. O que vemos é muito pouco, quase invisível, pois quase não há movimento, mas ao mesmo tempo tem muito movimento sendo que se frisarmos a imagem veremos quase nada também (apenas a impressão de um movimento). O que escutamos é a voz doce do realizador que nos engana: sarcástico, grave, irônico e grave novamente. Mas também escutamos sons achados no mundo (virtual) que quase nada dizem como a imagem criando uma sincronia inesperada e difícil de perceber. Um filme que desafia, que escolhe o caminho perigoso do terceiro mundo: divino e maravilhoso.

Aprenda a nadar

Um estudo sobre eqüidistância (e a dificuldade de atingi-la). Um filme sem história que pensa a narrativa. A praia como um palco com dois personagens alienados e deslocados, vide a expressão corporal. Se desse pra controlar a luz do sol é um filme que poderia ser feito quase sem cortes, pois é a mudança de luz que conduz a narrativa e neste sentido um filme que deve muito ao teatro. Mas também deve ao cinema de Bressane que re-significa o mar pelo uso do som alheio. É muito bonito poder perceber o movimento das ondas.

Depois do fim

A cada revisão eu vejo um outro filme. Este filme nos abre a porta da percepção. Força-nos a abrir bem os olhos. O olhar se torna o agente de construção. Quem se dispõe a trabalhar vai encontrar mil e uma possibilidades de encontros e desencontros. Quem se dispõe a se jogar vai adentrar uma espessa e densa camada de sensações alucinadas. Um filme lisérgico por excelência: completamente aberto... pra quem se dispor.

Chama violeta

Filme místico onde a natureza emerge com toda a força para trazer luz aos nossos olhos e às nossas almas. Um filme panteísta. A fragmentação do corpo é muito evocativa para o lugar que o filme quer habitar. É uma beleza que vem de dentro e se espalha por todos os cantos e para todos os lados sem distinção moral: um filme orgástico e dionisíaco. Um filme que faz amor com o mundo, a luz, a água e todo o resto.

p. f

Explosão do amor em imagem incontida. Um filme que resolve lindamente o abstrato com o figurativo trans-criando um sentimento vivo em imagem. Um filme sensorial que transborda a noção de quadro e borda para atingir um ápice, um amanhecer. Em muito me lembra o cinema experimental americano dos anos 60, especificamente o Fuses da Carolee Schneeman. Como o filme da americana, este filme se rejubila numa intimidade revelada, imortalizada.

Mar morto

Um vídeo-poema onde as imagens se ligam por vocação. Um filme sentimental e por isso imperfeito e incompleto, pois o sentimento ainda não está concluído, e nesse sentido um filme corajoso e verdadeiro. Onde o filme mais ganha, a meu ver, são nas soluções plásticas das imagens, onde existe muita qualidade pictórica. Uma qualidade de levitação.

Linha da pipa

Um filme que existe para dizer que a imagem não basta. Mas ao mesmo tempo pra dizer que é só através da imagem que é possível expressar tanta coisa, tanto sentimento. Uma câmera livre de tão presa. Um amor livre de tão preso.

Onde o tempo se perdeu

O registro da luz na praia, Fernando Catatau tocando guitarra e como os dois interagem às mudanças daquele cotidiano. Mas também um filme surfe por excelência. Um filme espontâneo construído na montagem. O filme termina num tom melancólico e solitário. Quando o tempo se perde, nós também nos perdemos.

Ricardo Pretti

2 comentários:

Cinecasulófilo disse...

Ricardo,
muito bacanas essas suas "pílulas" sobre cada episódio do Praia do Futuro. são muito sensíveis; é a diferença do seu texto para o meu e o do Francis: você é um artista, nós somos críticos. Acho que os três textos, juntos, formam um painel complementar de várias questões pelas quais o PRAIA DO FUTURO pode ser visto, e o que é bacana é que lendo-as conjuntamente, o filme ainda permanece misterioso e fugidio, ainda que não exatamente como antes.

Anônimo disse...

Eu escrevi de sopetão numa manhã e no final já estava exausto. eu tentei ir ao cerne de cada filme sabendo da impossibilidade de consegui-lo, mas que eu sabia que pra mim que não sou crítico (eu nem sei escrever corretamente) era a melhor forma de atingir uma sensibilidade com cada episódio (eu senti o perigo de escrever essas pílulas e torná-las em veículo de um único ponto de vista, o meu, quando o importante era tentar exprimir o que cada episódio me proporcionou depois de inúmeras revisões). fico muito feliz com o teu comentário, principalmente a parte final.
abs.
ricardo